sexta-feira, 27 de junho de 2008

The Great Gig in the Sky

The Great Gig in the Sky ("O Grande Espetáculo no Céu")
(Wright)

[And I am not frightened of dying, any time will do I don’t mind. Why should I be frightened of dying? There’s no reason for it, you’ve gotta go sometime. I never said I was frightened of dying.]

Tradução
[E eu não tenho medo de morrer, qualquer hora pode acontecer, sei lá. Por que eu deveria ter medo de morrer? Não há razão para isso, um dia você vai. Eu nunca disse que eu tinha medo de morrer.]

Análise

O som ‘The Great Gig in the Sky’ é instrumental e diz respeito à morte e à religiosidade, ou, misticismo. Assim como nos outros instrumentais ‘Speak to Me’ e ‘On the Run’, aqui também ouvimos vozes ao fundo (vide transcrição acima) – e que faz parte, conforme já foi explicado, do apanhado de respostas do questionário que Roger Waters formulou. E, claro: aqui aparece o extraordinário vocal de Clare Torry. E tal vocal não foi inserido na canção à toa. Sobre isto falarei mais adiante. Antes, julgo interessante contar uma curiosidade sobre Clare Torry. A cantora inglesa foi convidada pelos produtores do Estúdio Abey Road para uma pequena participação no álbum ‘The Dark Side of Moon’. No princípio, Roger Waters reprovou a participação de Clare Torry. Mas foi voto vencido. Os produtores então puseram a cantora diante do microfone e teriam dito a ela: “Pense na morte; pense no horror... E cante!”. Clare não entendeu bem o que eles queriam, mas cantou o que ela sabia. Gravou rapidamente e foi embora arrasada e se desculpando com todo mundo. Porque achou que tinha ficado horrível aquilo que, até então, era apenas um berreiro descontextualizado; sem acompanhamento algum. Depois, os produtores usaram alguns efeitos disponíveis na época e introduziram o piano de Wright. O resultado, que todos conhecemos, acabou maravilhando Roger Waters.

Pois eu falava do sentido do vocal “desesperador” de Clare Torry. Bom, se você leu acima a parte oral do instrumental (“E eu não tenho morrer...”), vai perceber ali uma visão otimista (por assim dizer) e corajosa a respeito da morte. E tais palavras parecem reproduzir exatamente o que muitas pessoas dizem por aí da “boca pra fora”, ou seja, aquela velha máxima: “medo da morte por que? Um dia todo mundo vai mesmo...”. E no som, logo depois de você ouvir essas palavras, entra o vocal de Clare Torry expressando o horror e passando-nos um sentimento desesperador. E a idéia do álbum é exatamente esta: contrapor o que nós dizemos com aquilo que nós efetivamente sentimos.

Uma outra curiosidade importante: anteriormente intitulado de ‘The Mortality Sequence’ (“A Seqüência da Mortalidade”), resolveram mudar o título para ‘The Great Gig in the Sky’. Na minha opinião, tal mudança teria se dado pelo seguinte fato: o título original (‘The Mortality Sequence’) particularizaria, ou, limitaria a proposição exclusivamente à idéia da morte. Já o título (‘The Great Gig in the Sky’), ao contrário, gera um conceito muito mais amplo – e enigmático, pois nos provoca a pergunta: a que se refere “o espetáculo no céu?”. Assim, podemos pensar em tal “espetáculo” como a mania que o ser humano tem de atribuir ao céu a resposta para todas aquelas questões, ou, crenças nas quais nunca obtivemos uma resposta satisfatória: deus, religiosidade, misticismo, extraterrestres, universo... E, claro, a morte.

E assim, ‘The Great Gig in the Sky’ fecha a primeira fase do álbum. Nos antigos LPs (Long Plays, ou, discos de vinil), este som encerrava o que chamávamos de “lado A”. E “virar o disco”, no caso do ‘The Dark Side of Moon’, não trazia apenas a conotação de mudança de faixa, ou, música. Havia também, no meu entender, uma simbologia que estava claramente estampada na capa do álbum: a mudança do universo monocromático para o universo colorido.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Breathe Reprise

Breathe Reprise
Composição: Waters, Gilmour, Wright
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Home, home again
I like to be here when I can
When I come home cold and tired
It's good to warm my bones beside the fire
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Far away across the field
The tolling of the iron bell
Calls the faithful to their knees
To hear the softly spoken magic spells.

Tradução

Respire Reprise

Lar, lar novamente
Eu gosto de estar aqui quando posso
E quando volto para casa com frio e cansado
É bom aquecer os meus ossos junto à lareira

Lá ao longe, do outro lado do campo
A badalada do sino metálico
Invoca os fiéis a se ajoelharem
Para ouvirem baixinho as mágicas pregações

Análise

Não é à toa que esta canção foi estrategicamente disposta ao final da canção ‘Time’ e se chama ‘Breathe Reprise’. Pois ela nos remete exatamente à idéia da implacabilidade do tempo (como “diz” ‘Time’) e se incorpora numa espécie de continuação contraponteada de ‘Breathe’. Explicando...

Após captarmos a mensagem de ‘Time’, imaginamos que a pessoa já está ‘velha’ (espiritualmente falando) e entregue ao comodismo que já foi explicado na mesma (Time). E a “volta ao lar” sob qualquer propósito, ou seja, “quando eu posso” contrapõe-se a ‘Breathe’, quando o narrador dizia “Vá, mas não me deixe / Olhe em sua volta escolha e escolha seu próprio chão (...)”. E conclui: “E sorrisos você dará e lágrimas você chorará / E tudo que você tocar e tudo que você enxergar / É tudo que a sua vida um dia será”.

Em contraposição a isso, na Reprise de Breathe temos a imagem da pessoa voltando para casa com frio e cansada. Isto nos dá uma idéia, de certa forma, de uma derrota; da falta de um aconchego humano, ou seja, a carência afetiva (metaforicamente representado pelo ‘frio’) e a dureza da labuta (representado pelo ‘cansaço’) que o narrador bem avisou ao final de ‘Breathe’: “Somente se você entregar-se à maré / E equilibrar-se na onda mais alta / Você disputa a corrida para a sepultura precoce”.
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E a imagem da pessoa se aquecendo defronte a lareira é o clássico cenário do suposto conforto que sugere a impassibilidade, ou, comodismo. A própria frase “aquecer os ossos” já é a senha que nos remete à idéia da morte – já que os ossos são os únicos órgãos que remanescem à passagem do tempo após a morte. E aqui estamos falando da metáfora da mesma, ou seja, da “morte espiritual” que também foi comentada anteriormente na análise de ‘Breathe’. E os últimos versos parecem reforçar isto.... De que forma?

Os últimos versos trazem uma referência à religiosidade. E os letristas, sabiamente, sobrepuseram duas imagens: o nosso personagem no comodismo defronte a lareira enquanto, do outro lado do campo, os sinos chamam as pessoas para as “pregações mágicas”. A idéia dessas “badaladas do sino” parece uma referência ao poema ‘For whom the Bell Tolls’ (“Por Quem os Sinos Dobram”), do poeta inglês John Donne (não confundir com a obra homônima de Hemingway). E o final do poema nos clareia neste aspecto:
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“Any man's death diminishes me, because I am involved in mankind; and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee...”
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Traduzindo:
"A morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.

Ante esta “imagem” de Donne (brilhantemente captada por Waters), podemos deduzir que, a despeito de virem do outro lado do campo, os sinos tocam e as pessoas oram pela morte do próprio personagem diante da lareira.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Time

Time
Composição: Gilmour, Mason, Waters, Wright

Ticking away the moments that make up a dull day
You fritter and waste the hours in an offhand way
Kicking around on a piece of ground in your home town
Waiting for someone or something to show you the way

Tired of lying in the sunshine staying home to watch the rain
You are young and life is long and there is time to kill today
And then one day you find ten years have got behind you
No one told you when to run, you missed the starting gun

And you run and you run to catch up with the sun, but it's sinking
And racing around to come up behind you again
The sun is the same in a relative way, but you're older
Shorter of breath and one day closer to death

Every year is getting shorter, never seem to find the time
Plans that either come to naught or half a page of scribbled lines
Hanging on in quiet desperation is the English way
The time has gone, the song is over, thought I'd something more to say


Tradução:

Tempo

Contando os momentos que maquiam um dia enfadonho
Você desperdiça e perde tempo à toa; nem aí pra nada
Perambulando no seu mundinho na sua cidade natal
Esperando alguém ou algo pra te mostrar o caminho

Cansado de ficar de papo pro ar em casa vendo a chuva cair
Você é jovem e a vida é longa e hoje há tempo pra matar
E assim um dia você descobre que dez anos voaram
Ninguém te falou quando correr, você perdeu o tiro de partida

E você corre e corre para alcançar o sol, mas ele está se pondo
E correndo em volta da Terra pra surgir novamente atrás de você
O sol é relativamente o mesmo, mas você está mais velho
Sem fôlego e cada dia mais perto da morte

Cada ano vai ficando mais curto, parece que nunca há tempo pra nada
Planos que deram em nada ou mesmo meia página de linhas rabiscadas
Suportando um silencioso desespero é bem o jeito inglês
O tempo acabou, a canção terminou, acho que tinha algo mais a dizer


Análise

A canção ‘Time’ começa com um oportuno despertador que simboliza a própria mensagem da letra. É como se os letristas quisessem dizer: “hei, acorda pra vida!”.

Antes de começar a análise, vale uma observação a respeito da tradução. Em primeiro lugar, a expressão “ticking away” (um phrasal verb relativo à passagem e/ou marcação de tempo) está condicionada a “moments” e toma, assim, um sentido cujo melhor correlato para o português seria “contando os momentos” – no sentido de “passando o tempo em momentos”. Uma outra observação é relativo ao complicadíssimo “make up”, que pode tomar o sentido de ‘compor’, ‘compensar’, ‘fantasiar’, ‘iludir’, ‘disfarçar’, ‘maquiar’... Veja que, se é verdade que qualquer um desses verbos se encaixaria no verso, também é verdade que cada um muda consideravelmente o sentido do mesmo. Pessoalmente, considero que o termo metafórico “maquiar” seria mais apropriado para o contexto. Bom, para explicar isto, melhor é partir direto para a análise...

A letra fala de uma pessoa jovem que, “de bobeira”; fechado no seu mundinho, vai vivendo o seu dia-a-dia “chutando lata”, como se diz por aí. Embora a pessoa não esteja satisfeita, ela vai levando sua vidinha ociosa; vai se relacionando com pessoas com as quais, no fundo, nem gostaria de estar... Assim, os momentos (bons e ruins) que ela vai passando nessa vidinha medíocre só servem para maquiar o que, no fundo, é pura monotonia.
O verso “Esperando alguém ou algo pra te mostrar o caminho” mostra aquele comodismo da pessoa que, em vez de correr atrás, prefere acreditar no milagre de que, um dia, vai aparecer aquele alguém que vai lhe tirar do fundo do poço; que vai dar aquele empurrão encorajador na direção do sucesso.

A segunda estrofe começa com o “Tired of lying in the sunshine”, que tem sido traduzido para algo como “Cansado de ficar estirado ao sol”. Tudo bem. Mas devemos entender “lying in the sunshine” como uma expressão idiomática que conhecemos como “ficar de papo pro ar”. Até porque, se analisarmos o verso, ficaria estranho a tradução literal “Cansado de ficar estirado ao sol ficando em casa pra ver a chuva cair”. Enfim, a estrofe inicia como a referência à pessoa que já está de saco cheio da vidinha “mais ou menos”. Porém, no fundo ela se conforma porque raciocina da seguinte forma: “eu sou jovem e a vida é longa; portanto, eu posso coçar o saco hoje que amanhã dá pra compensar”. E no dia seguinte faz a mesma coisa; e depois idem... E eis que, um dia, ela vê que dez anos passaram rapidinho; e não apareceu ninguém para dar um toque... E quando a pessoa resolve acordar, vê que ficou pra trás – “You missed the starting gun!”. Interessante notar que aqui, assim como na canção ‘Breathe’, é recorrente a analogia da vida com a disputa de uma corrida. Pois lá (em ‘Breathe’) a letra traz a menção irônica: “Mas somente se você entregar-se à maré / Você disputa a corrida para a sepultura precoce”.

A terceira estrofe começa também como uma recorrência ao que foi visto em ‘Breathe’: a referência ao sol como algo positivo. A pessoa corre para tentar alcançar o sol (ou, como dizem, “conseguir o seu lugar ao sol”), mas ele já está se pondo. E o sol vai correr dando uma volta inteira na terra e ressurgir atrás da pessoa (então já retardatária)... Mas quando o sol surgir novamente, a pessoa já está velha e sem fôlego para alcança-lo... E o processo vai se repetindo até o dia em que a pessoa se vê perto da morte e com o dilema: do que me valeu a dádiva da vida se eu não tive competência para preenchê-la de maneira sublime?

Finalmente, a última estrofe fecha de maneira melancólica os ‘toques’ da letra – mas desta vez do ângulo da pessoa que, já velha, olha para trás e parece fazer uma reflexão do que foi sua vida. O primeiro verso “Every year is getting shorter (…)” exprime exatamente aquela sensação que todos nós temos: cada ano de nossas vidas parece que passa mais rápido que o anterior; e concomitante a isto, aos poucos se esgota o tempo para realizar algo. Isto fica mais nítido se uma pessoa mais velha fizer a comparação dos tempos de juventude, quando tinha tempo e energia de sobra para fazer tudo: estudar, correr, viajar, jogar, namorar, cinema, churrasco, balada...
E ainda olhando para trás, lembramos daqueles planos que nunca saíram do papel exatamente pelos imprevistos ou pela própria inércia; pelo comodismo. A imagem da “meia página de linhas rabiscadas” remete-nos exatamente a isto: um projeto de vida interrompido no meio do caminho – que é emendado pela famosa frase: “Suportando um silencioso desespero é bem o jeito inglês”. Esta é uma crítica de Roger Waters aos seus compatriotas, reconhecendo nestes o conservadorismo até mesmo da sua própria infelicidade; a inércia que impede uma atitude para se erguer e mudar sua vida.
E o último verso, embebido por fina ironia, é um fecho espetacular que vem como um resumo, ou, confirmação da mensagem principal da letra. Quer dizer: o tempo, implacável que é, não perdoou inclusive os letristas. Pois estes falaram, falaram... E eis que o tempo se esgotou, a canção terminou e eles não puderam dizer tudo aquilo que pretendiam. Ou seja: fica-nos a impressão de que a letra ainda tinha algo de importante para dizer e que acabou ficando perdido pelo esgotar do tempo – tal qual uma vida que chega ao fim com as diversas oportunidades destruídas pela implacabilidade do tempo.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

On the Run

On the Run ("Em Fuga")
(Gilmour, Waters)

Embora seja essencialmente instrumental, “On The Run” merece uma análise bem ao nível do Pink Floyd. Pois há neste som toda uma simbologia que é a marca registrada do ‘The Dark Side of Moon’ – e que nos traz claramente a continuidade do enredo que já foi explicado anteriormente...

Preliminarmente batizada pela banda de ‘The Travel Sequence’ – ou, “A Seqüência da Viagem” (sugestivo, não?) –, você percebe que o som se inicia com a voz de uma “locutora de aeroporto” e depois segue com o ruído de passos e diversos efeitos de aeronaves e explosões. O que isto significa? Vamos à análise...

Como num contraponto à canção ‘Breathe’, o som ‘On The Run’ começa num ritmo frenético... Você começa a ouvir a típica voz de uma locutora de aeroporto como que anunciando uma partida e em seguida vêm os passos de alguém que, esbaforido, corre supostamente para não perder o vôo.

Na seqüência, ouve-se uma voz masculina (talvez o piloto da aeronave) dizendo “Live for today, gone tomorrow, that’s me” – que seria traduzível para “Viver o hoje, amanhã já era, este sou eu” – e depois dá uma sádica gargalhada mecanizada. Tal passagem reforça a idéia da entrega aos perigos anteriormente exposta na frase “Equilibrar-se na onda mais alta”, de ‘Breathe’. Na seqüência do som, ouvem-se aeronaves e explosões... Depois advém o silêncio, numa alusão de que tudo se estraçalhou – inclusive levando à morte o piloto (que supostamente pilotava a aeronave de maneira insana e suicida).

O interessante é que, após as explosões, você ouve novamente os passos da pessoa juntamente com a respiração. A interpretação mais sensata para isto é que a pessoa que estava correndo acabou perdendo o seu vôo – uma fatalidade que, no fundo, acabou salvando sua vida por não ter embarcado naquela viagem suicida. Isto vem nos mostrar o quanto é tênue a linha que separa a vida da morte... Pois em muitos casos (muito provavelmente com você mesmo tenha acontecido) um mero acaso evita que nós embarquemos numa “canoa furada” – o que nos leva a questionar: estariam nossas vidas à mercê da sorte?

Assim, o título ‘On the Run’ remete-nos à idéia da nossa eterna fuga da morte. Ou, noutro ângulo: viver é também o exercício de driblar o constante espreitar da morte.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Breathe

Breathe ..............................................................Respire
Composição: Waters, Gilmour, Wright

Breathe, breathe in the ar................................Respire, inspire o ar
Don't be afraid to care...............................Sem receio de se envolver
Leave but don't leave me.................................Vá mas não me deixe
Look around and choose your own ground....Olhe em sua volta e escolha seu próprio chão
For long you live and high you fly......Para que você tenha uma vida longa e voe alto
And smiles you'll give and tears you'll cry......E sorrisos você dará e lágrimas você chorará
And all you touch and all you see..........E tudo que você tocar e tudo que você enxergar
Is all your life will ever be........................É tudo que a sua vida sempre será

Run rabbit run...........................................Corra coelho corra
Dig that hole, forget the sun,...................Cave essa toca, esqueça o sol,
And when at last the work is done....E quando finalmente o trabalho esitver concluído
Don't sit down it's time to dig another one...Não descanse é hora de cavar outra
For long you live and high you fly.......Para que você tenha uma vida longa e voe alto
But only if you ride the tide........................Mas só se você entregar-se à maré
And balanced on the biggest wave...........E equilibrar-se na onda mais alta
You race towards an early grave..........Você disputa a corrida para a sepultura precoce.


Análise

Na internet, encontrei várias traduções, ou, versões diferentes para esta letra. Eu nunca ousaria dizer que estão equivocadas. É uma questão de interpretação da letra. Afinal, a variedade interpretativa é que dá graça à arte.

Assim, alguém pode questionar, por exemplo, por que não traduzi o refrão “For long you live and high you fly” para “Por mais que você viva (...)”, que inunda a internet.
Bom, a explicação está na parte mais repulsiva da gramática. Se iniciarmos uma frase com uma conjunção concessiva “por mais que”, então teremos que admitir que estamos diante de uma oração subordinada adverbial concessiva. Neste caso, cadê a subordinação? Não há. Assim, o lógico é admitir que o refrão, posto estrategicamente ao meio de cada estrofe, finaliza (com ironia até) as idéias contidas nas orações antes dela. Confuso, não? Mas vou tentar melhorar este raciocínio com a interpretação da letra. Daí você vai perceber o quanto ela foi bem construída.

Conforme já foi dito, ‘Breathe’ está dividida em duas estrofes (conforme o site oficial do Pink Floyd). E estas foram cuidadosamente elaboradas num antagonismo: a primeira é um aconselhamento positivo (aparentemente ingênuo e subjetivo) ao passo que a segunda é um aconselhamento negativo (malicioso e realista). Voltarei a este raciocínio mais para diante.

Bom, a canção segue a lógica cronológica do 'The Dark Side of Moon’. Ou seja, como estamos no começo do álbum, supõe-se que faz referência a um jovem que começa a dar seus primeiros passos na vida – e que recebe o conselho de uma pessoa mais velha, ou, mais experiente. O primeiro conselho é singelo, mas poderoso: “respire, inspire o ar”. A respiração é o primeiro ato da vida e é a única faculdade da qual os seres aeróbios não podem preterir. Em seguida, a letra diz para o jovem não ter medo de ousar; de partir.... A frase “Don’t be afraid to care” tem sido traduzida para “sem receio de se preocupar” – o que torna a expressão meio sem sentido. O “to care” traz o sentido do relacionamento; do envolvimento com o outro. Pois muitas pessoas têm medo de se entregar; de se envolver numa relação exatamente pelo medo de, no fim das contas, sobrevierem os possíveis ferimentos; os sofrimentos; as mágoas... Assim, o sentido da frase é um encorajamento para pessoa não temer os relacionamentos humanos. Em seguida, vem a experessão que reforça a idéia deste encorajamento – “vá”! –, com uma ressalva: “mas não me deixe”. Isto parece refletir um desejo muito comum dos pais, que torcem pela independência dos filhos – mas temem que tal independência se transforme em abandono. Depois vem “olhe em sua volta, escolha seu próprio chão”. Assim, o jovem não deve limitar-se em ficar recluso no seu círculo (mundinho). E vem o refrão que finaliza os aconselhamentos, como se o conselheiro dissesse: “tudo isso que acabei de dizer é para que você viva muito e voe alto”.
O conselheiro segue dando os seus toques: “você vai experimentar todas as emoções possíveis (na letra metaforicamente resumidas em "sorrir e chorar"); viverá toda a realidade ("tocar e enxergar"). E isto será o bastante para você traçar a sua vida.

E vem a segunda estrofe... Sem dó nem pena, o conselheiro quebra a suave subjetividade dos primeiros conselhos e ordena sem vírgulas (o que sugere falta de fôlego): “corre coelho corre”. A analogia com o coelho não foi à toa. Pois o coelho é um animal cuja única virtude vital é a ligeireza e a fertilidade. No mais, só se presta aos desmandos alheios: além de ser a “presa universal” do reino animal, é a cobaia preferida nos experimentos científicos e títere preferível dos mágicos por sua conhecida passividade. Mais: o coelho é o animal que, numa ilusão de ótica, muitos “enxergam” nas manchas da lua. Enfim, a ironia da coisa: é um animal que vive relativamente pouco (em média 7 anos) e que não voa – numa clara contradição ao desejo do conselheiro: “para que você tenha uma vida longa e que voe bem alto”.

A letra prossegue: “Cave essa toca, esqueça o sol / E quando finalmente o trabalho estiver terminado / Não descanse é hora de cavar outra”.
Aqui, o escuro (na imagem da toca, ou, buraco) entra como parte negativa e o sol como a parte positiva (prazer). Quer dizer: não importa o que você faça nesta vida, o importante é trabalhar sem pensar nas coisas boas; nos prazeres. Logo em seguida o refrão: “Para que você viva muito e voe bem alto” – e a ressalva: “Mas só se você entregar-se* à maré / E equilibrar-se na onda mais alta / Você disputa a corrida para a sepultura precoce”.
*Obs.: na letra, a expressão “ride the tide” (cavalgar a maré; ir de acordo com a maré) traz implicitamente o sentido de ‘entrega’.

Este é, enfim, um final irônico dos aconselhamentos: a entrega à maré e às altas ondas do mercenarismo desenfreado é também uma entrega à morte prematura. Aqui, a imagem de um surfista entregando-se perigosamente à maré para pegar as ondas mais altas entra não só como simples metáfora para o establishment, mas também para simbolizar a influência negativa da lua (que rege as marés) que, aliás, também parece reger o álbum.
Veja que a morte, aqui, não seria necessariamente a representação física da mesma, mas sim a morte espiritual do indivíduo. Ou seja: uma vida insossa sem importar-se com os fatores existenciais é também uma forma de morrer.

Agora, o mais interessante – e que, até hoje, parece que ninguém sacou: as duas estrofes estão simetricamente interligadas numa espécie de complemento irônico quase que esboçando um antagonismo. É como se os aconselhamentos “suaves” da primeira fossem, no fundo, uma preparação para os aconselhamentos “pesados” e contraditórios do segundo. Assim, juntando as duas estrofes (em cores diferentes para melhor visualisar), teremos:

Respire, inspire o ar (tome fôlego)>
corra coelho corra (sem fôlego)

Sem receio de se envolver (sem medo dos possíveis sofrimentos)>
Cava esse buraco, esquece o sol (sofrimento)

Vá, mas não me deixe >
Quando seu trabalho estiver terminado (você me deixará)

Olhe em sua volta, escolha seu próprio chão >
Não descansa é hora de cavar outro (não há escolha)

Para que você viva muito e voe alto (refrão)

E sorrisos você dará e lágrimas você chorará (experimentará todas as emoções)>
Mas só se você entregar-se à maré (sem emoções)

E tudo que você tocar e tudo que você enxergar >
Equilibrando-se na maior das ondas (na onda, um surfista não pode tocar em nada; e seus olhos ficam à mercê da estrita concentração nas manobras)

É tudo que a sua vida sempre será >
A corrida para a sepultura precoce.