quinta-feira, 22 de julho de 2010

O CQC e o factóide da "PEC da cachaça"

 Dicionário Aurélio: 

Factóide: fato, verdadeiro ou não, divulgado com sensacionalismo no propósito deliberado de gerar impacto da opinião pública e influenciá-la.

O programa CQC – Custe o Que Custar, humorístico da TV Band -, exibiu no dia 16/06/10 um quadro baseado numa “pegadinha” com alguns deputados – fazendo-os assinar uma PEC propondo adicionar a cachaça na cesta básica do brasileiro. E o resultado foi este: o programa fez sucesso, ecoou na internet e despertou ainda mais a fúria do grande público em relação aos políticos.

Na melhor das hipóteses, o programa em questão serviu para nos alertar da cautela que devemos ter naquilo que assinamos. Se fosse este o foco – “até pessoas importantes assinam documentos sem ler” –, o CQC conseguiria fazer um serviço de utilidade pública com pitada de humor. Mas em vez disto, o programa não passou de um sensacionalismo barato, jogando mais lenha na fogueira em que arde o prestígio dos políticos brasileiros. E o foco acabou sendo este: “os políticos são tão incompetentes, que eles assinam as leis sem ler”. Para piorar a situação, um dos deputados reagiu de forma insana e agrediu a equipe do programa – dando, pois, mais tempero ao “show” e dando mais margem à indignação popular: “além de incompetentes, são truculentos”.  

Para entender por que falo em sensacionalismo barato, melhor é partir de um exemplo prático buscado nos próprios profissionais (burocratas, empresários etc.) que precisam assinar diariamente incontáveis calhamaços. Com a rotina, muitos acabam confiando suas assinaturas menos naquilo que está escrito e mais naquelas pessoas que estão portando os papéis para serem assinados. Um empresário, por exemplo, compenetrado numa reunião qualquer, pode tranquilamente assinar sem ler um documento acidentalmente trazido pelo funcionário, que o comunica superficialmente sobre o assunto tratado no papel. Sim: muitos assinam sem ler direito. É um equívoco, pois, confundir o descuido pessoal (assinar uma PEC sem ler) de alguns políticos com os graves desmandos que acontecem na política em geral. Em outras palavras: um deputado que assina uma PEC sem ler não é necessariamente um homem público ruim.  


Entendendo uma PEC

Agora, para entender a bobagem do CQC, é conveniente uma ligeira explicação sobre o significado e os trâmites de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição)...

O procedimento preliminar de uma PEC é o deputado (autor da proposta) elaborar um ofício e buscar a assinatura dos colegas Pare este fim, ele normalmente escala funcionários ou contrata pessoas. Foi o que o CQC fez: contratou uma moça para colher assinaturas para uma PEC fictícia de um deputado também fictício. E pelo que o CQC mostrou, alguns deputados assinam uma PEC sem ler direto. Isto até porque a assinatura preliminar numa PEC tem caráter informal; reversível... Sem falar que, bem ou mal, existe uma praxe de coleguismo entre os deputados, quando um político da oposição assina uma PEC do político da situação – ou vice-versa. É como se o deputado quisesse dizer ao colega que, no campo pessoal (extra-partidário, ou, antes de o partido sentar para discutir a proposta), há sempre boa vontade. Em suma: é uma assinatura tecnicamente volátil, não trazendo, em rigor, efeito prático algum. Pois a proposta fatalmente voltará de maneira formal ao conhecimento do deputado e ele poderá retirar (ou manter) sua assinatura de acordo com a orientação do seu partido. Mas se for uma proposta esdrúxula e até ilegal (como foi o caso), ela nunca voltará ao deputado, pois morrerá bem no início de um longo e exaustivo processo.

Então chega alguém com uma PEC propondo o aumento de um item na cesta básica do brasileiro e o deputado, na melhor das intenções (presume-se), assina. Qual o crime nisto? Como o programa CQC não exibiu o documento, podemos ainda presumir que a expressão “cachaça” estivesse truncada ou mesmo substituída por uma das suas várias adjetivações – ou ainda embaralhada numa linguagem empolada para confundir o leitor menos atento. Depois, vai a "repórter" jogar na cara do deputado o que ele assinou. E o constrangimento é óbvio para fazer um espetáculo circense em pleno Congresso Nacional, provocando (às vezes de forma injusta) a fama de incompetente a determinado político. Pois para o leigo, a assinatura numa PEC já é lei. Foi o que o programa quis deixar entender.

Pois então qual é o efeito prático (“grave” e “absurdo”) de um deputado assinar uma PEC propondo a marvada na cesta básica? Nenhum! Explica-se...

 As assinaturas numa PEC só dão o direito a determinado deputado de protocolar a proposta que, depois, passa por um rigoroso trâmite. E para ter direito de protocolar a proposta, o deputado precisa de 171 assinaturas dos colegas. Depois disto, segue para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania avaliar o mérito da matéria. Já aqui, a “PEC da cachaça” já estaria morta, ainda mais que a proposta não tinha autoria legítima. Mas vai que, por um surreal acidente de percurso, fosse aprovada...

 Se aprovada, a PEC volta para a Câmara para ser (aí sim) discutida, precisando de 3/5 de aprovação (308 votos dos deputados) em dois turnos. Daí o deputado pode manter ou retirar sua assinatura. Se aprovada na Câmara, segue para o Senado, onde passa pelos mesmos trâmites (também em dois turnos, sendo necessários 49 votos dos senadores).


Congresso Nacional não é circo

O ardil (qual outro nome?) do CQC, que em nada contribui para a moralidade na política, só serviu para trazer constrangimentos desnecessários a alguns deputados – e, claro, para denegrir a imagem de um Congresso já fartamente torpedeado e com a credibilidade em baixa. Razões para isto, claro, não faltam.

Foi cogitada entre alguns deputados a hipótese de coibir “brincadeiras” do tipo dentro do Congresso Nacional. Por sua vez, integrantes do CQC e mesmo profissionais de TV reclamam da “censura”, ou, “cerceamento da liberdade de imprensa”. Creio que andam confundindo liberdade com libertinagem, ou, leviandade.

Você pode (e deve) ter todos os motivos do mundo para reprovar os políticos e a condução da política nacional como um todo; o político pode (e deve) aceitar que uma equipe de TV leve humor que venha a quebrar de maneira saudável as tensões no seu ambiente de trabalho. Por sua vez, a imprensa deve gozar de plena liberdade para (com humor ou sem humor) exercer o trabalho dela, denunciando todo e qualquer vício, principalmente no espaço democrático que é o Congresso Nacional. Mas, definitivamente, ali não é lugar de palhaçada. 

O link para o vídeo:

https://www.youtube.com/watch?v=lpuhlMpv5Fk

(Publicado no Portal Nassif dia 22 de julho de 2010; Publicado no Observatório da Imprensa em 27 de julho de 2010).