A morte do soldado Eric Flecher Waters na Segunda Guerra Mundial, em fevereiro de 1944, ocorreu cinco meses depois do nascimento do seu filho Roger. Não se sabe se foi este o fator determinante para que a fama de um dos maiores ídolos do pop rock mundial se estendesse também para o seu refinado senso crítico em relação aos descaminhos do mundo – principalmente a guerra. Não é à toa, pois, que ‘Us and Them’ pode ser considerada, sem favor nenhum aos grandes poetas clássicos, uma das mais belas – e realistas – construções poéticas sobre a guerra. Nesta canção, temos mais claramente o toque autobiográfico de Roger Waters – toque este que ressurgiria anos depois em dois outros álbuns: ‘The Wall’ (1979) e ‘The Final Cut’ (1983).
Antes de integrar o álbum ‘The Dark Side of Moon’, ‘Us and Then’ foi batizada preliminarmente de ‘The Violent Sequence’ (“A Seqüência Violenta”) para servir como parte da trilha sonora do filme Zabriskie Point (1970), de
Michelangelo Antonioni. A mudança do título foi muito feliz, uma vez que permitiu interpenetrar-se à letra um teor lírico. E principalmente isto: com a mudança, o título transcendeu ao caráter estritamente bélico para nos falar das ‘diferenças’ no seu sentido mais amplo: sócio-econômicas, étnicas, raciais... Iniciemos, pois, a análise...
Como um gancho ao título, o início da letra parece nos remeter a uma “reflexão” de um soldado numa batalha em que o front de um dos lados foi dizimado. E o interessante é que a letra não nos explicita de que lado estava o soldado, ou seja, se do lado perdedor ou vencedor da batalha. Afinal, a idéia é exatamente esta: expressar que, a despeito dos lados que brigam, toda a batalha é protagonizada por inúmeros soldados (pessoas comuns); a ralé que forma a base de uma complexa pirâmide hierárquica em cujo topo está o escol, seja este civil ou militar. E na batalha, não há outra escolha senão obedecer às ordens “vindas lá de trás”: “Forward he cried from the rear”. Aqui, fica clara a distinção entre os comandados da linha de frente e o comandante que, na segura retaguarda, mandou os solados avançarem (para a morte). E na posição ainda mais alta da pirâmide, está sentado o general – que, incólume em seu gabinete ante o mapa, manipula seus comandados em traçados estratégicos que, no fim, transformam-se em linhas embaralhadas que só ele entende. Assim, aos olhos dos comandantes, o real horror da guerra (com mortos e feridos) transforma-se em simples cores (preto e azul) no estratagema esboçado num pedaço de papel. A guerra; as vitórias e derrotas; os impérios, no fim das contas, vira um ciclo sem fim, ou seja, as guerras nunca se extinguirão até por conta de algo só explicável pelo fato de o homem, como diz Saramago, ser o único animal capaz de matar não pela sobrevivência – mas pela pura crueldade fomentada pela ganância. Estamos, enfim, na interminável luta entre opressores e oprimidos.
A letra logo em seguida traz um verso que serve de contraponto:
“E no fim das contas isto vira um ciclo sem fim”. Veja que este verso divide dois cenários que sugerem o “ciclo sem fim”: o primeiro, que foi visto acima – ou seja, o resultado trágico de uma batalha em que um front foi dizimado (FIM). E o segundo: uma cena urbana que sugere a gestação de uma guerra (INÌCIO). Para entender tal cena urbana, é necessário explicar algo incomum no Brasil e muito comum nos EUA ou Reino Unido. No Brasil (porque o serviço militar é obrigatório), o exército não precisa fazer a “propaganda de campo”, coisa muito corriqueira no Reino Unido e Estados Unidos (onde o serviço militar, há tempos, é voluntário). A “propaganda de campo” é para convencer um jovem entrar no exército e consiste no seguinte: o exército manda para as ruas belos módulos móveis (normalmente trailers) com pessoas muito bem vestidas em pomposas fardas para fazer uma abordagem aos jovens (normalmente pobres e/ ou imigrantes), tentando convencê-los das grandes vantagens de servir ao exército.
Para a compreensão da letra, torna-se conveniente construir a cena urbana imaginada por Waters usando-se três personagens: o primeiro, é um manifestante pacifista portando um cartaz (sugestivamente escrito “paz”); o segundo é um desses aliciadores enviados pelo exército – na letra simbolicamente representado pelo homem portando uma arma; e o terceiro é um jovem rapaz, muito provavelmente pobre. Mais notadamente a partir da Guerra do Vietnã e o advento Woodstock, era muito comum os manifestantes saírem com a palavra “paz” escrita em cartazes e bradando palavras de ordem contra a guerra. E a letra parece mostrar um jovem que, desavisado, passa por uma manifestação dessas e logo em seguida é abordado pelo aliciador para entrar para o exército. Nasce daí a batalha de palavras: “guerra x paz”. Pois o manifestante alerta o jovem para não cair nessa enquanto o aliciador tenta convencê-lo de forma fraternal: “escuta, filho, há um quarto para você lá dentro”, ou seja, com uma mão o aliciador aponta para o trailer dizendo que ali há um quarto, ou, abrigo para o jovem (o que sugere aconchego) – mas com outra mão segura uma arma (o que sugere violência). Logo após este verso, segue-se a “voz de fundo” que assim começa o seu relato:
“Acho que eles não vão te matar (...)”. Não é por acaso que Roger Waters (e os produtores) optaram por mixar tal “voz de fundo”. Conforme já foi explicado anteriormente, tais vozes é que dão o tom do “Lado Escuro da Lua” do álbum. Neste caso específico, o "texto" é de Roger the Hat – uma espécie de supervisor operacional do Pink Floyd. Pois ele, que era tido como um bonachão, foi sorteado com a seguinte pergunta: “qual foi a última vez que você cometeu uma violência”. Evidentemente que o referido trecho, descontextualizado do relato completo, fica sem sentido algum. Também a título de curiosidade, o trecho extraído de Roger the Hat foi exatamente a parte final da sua fala, que relata o seguinte caso: ele teria emprestado sua caminhonete para um sujeito que deu carona para algumas pessoas; depois o sujeito, já bêbado, começou a dirigir alucinadamente, quase causando uma tragédia. Após uma discussão com o incauto, Roger the Hat deu-lhe uma “porrada de leve”. Enfim, esta revelação, ou seja, a confissão (do lado violento) é posta justamente quando o aliciador acaba por convencer o rapaz a entrar para o exército.
O refrão seguinte começa curto e grosso; e aparentemente nos mostra qual foi a opção do rapaz (que se deixou seduzir pelo aliciador) – e qual o destino que estaria traçado para ele:
“down and out”. Esta expressão, que já fora usada por George Orwell (‘Down and Out in Paris and London’) para se referir a alguém “na pior, ou, no fundo do poço”, também é muito usada no boxe para um lutador nocauteado. Mas no contexto bélico de Waters, seria algo como “morto e destruído”. E a letra emenda: “não há como evitar, mas há muito a respeito disso”. Esta frase (em que ‘guerra’ e ‘morte’ entram como termos elípticos) começa com um conformismo heideggeriano e acaba com uma ressalva platônica. Ou seja: embora a atração exercida pela guerra (e conseqüentemente a morte) seja algo inevitável para o jovem, não é por falta de aviso e conscientização que eles tomam tal decisão.
Eis que, finalmente, chegamos nas duas poderosas palavras-chave que resumem tudo – e que, inclusive, explicam o porquê de ‘Us and Them’ estar bem situado, no contexto do álbum, logo após a canção ‘Money’: ‘With and without’ (“Com e sem”).
O próprio letrista nos ajuda para explicar a frase: “E quem vai negar que essa é a razão de toda a luta?”. Sim, claro: se pararmos para pensar um pouco, chegaremos à conclusão de que todos os conflitos (bélicos, políticos, religiosos, ideológicos, étnicos, sociais etc.) são motivados essencialmente pela ganância do bicho-homem e sua eterna obsessão pelo “ter” – em detrimento do outro (“não ter”). Não vem ao caso, aqui, entrar em teses sócio-econômicas acerca do fato de a guerra ser algo essencial para o funcionamento da gigantesca “máquina capitalista” – já que às custas do bilionário orçamento bélico das grandes potências locupletam-se todos os setores econômicos, principalmente o setor secundário. Neste raciocínio, a ‘instituição guerra’ nos tempos modernos não é, como muitos imaginam, fomentada apenas pelo fator da conquista, mas sim como algo essencial para fazer girar a fortuna dos que sobrevivem às custas das tragédias humanas. Assim, por exemplo, para que o Congresso norte-americano libere bilhões de dólares para o orçamento militar daquele país, é necessário criar um clima instável entre as nações que justifique o investimento cada vez mais alto em tecnologia. E principalmente isto: é necessário que as bombas explodam.
Nos quatro últimos versos, voltamos ao cenário urbano – e ao desfecho que nos revela a opção tomada pelo jovem. Seduzido pelo aliciador, o jovem, agora, parece impacientar-se com os apelos do “homem que portava o cartaz”. A impaciência do jovem (em relação ao pacifista) parece refletir a reação de muitas pessoas quando cruzam na rua mesmo com um pedinte: “sai da minha frente que estou com pressa e sem saco”.
Enfim, os versos que encerram com chave de ouro a bela composição:
‘For want of the price of tea and a slice / The old man died’. A tradução poderia ser
“Por não querer saber do preço do chá e da torrada / O homem velho morreu".Para um brasileiro, ou melhor, para um não britânico, estas duas frases, aparentemente, não têm muito sentido. Mas saiba que são belíssimas sacadas de Waters. Para tentar compreender a idéia, iniciemos por evocar o sentido de um conhecido dito: “O seguro morreu de velho”. Em seguida, se substituíssemos o tea (chá) e o slice (fatia de torrada) por “café com pão” a coisa melhoraria, pois são duas “instituições” brasileiras que representam uma refeição mínima para sobrevivência. Na Inglaterra, tal instituição é o chá com torrada.
Mas o que isto tem a ver com o sentido da letra? Bom, as duas frases fecham metaforicamente o sentido dos versos anteriores e diz respeito ao egoísmo daqueles que, por só olharem o seu próprio umbigo, pouco se interessam no engajamento contra as mazelas do mundo. Por isto, vivem bem e sem estresse. Quer dizer: se uma pessoa não é capaz de questionar; revoltar-se; meter a cara num problema que diz respeito a ela própria (no caso, o aumento do preço da sua alimentação básica que, aliás, privaria os pobres de comer), então há grande chance de se ter uma vida longa, ou seja, morrer de velhice.