quinta-feira, 31 de julho de 2008

Any Color You Like

Any Color You Like ("Qualquer Cor que Você Desejar")
(Gilmour, Mason, Wright)

Análise

Como todo som puramente instrumental, analisar ‘Any Color You Like’ é tirar leite de pedra. Mas levando-se em conta o título e o contexto em que está inserido no álbum – entre uma canção que fala da guerra (‘Us and Them’) e outra que fala da loucura (‘Brain Damage’), há sim o que analisar (ou “viajar”, como queira...) – a começar pela polêmica sobre a inspiração do título e, claro, pelo impagável som (mais notadamente o solo de David Gilmour) que, no fim das contas, parece nos desnortear (no melhor sentido)...

Há várias teorias desencontradas acerca da origem do título: uma delas diz respeito a Henry Ford, que em 1920 teria soltado uma frase irônica a respeito da sua decisão de, para cortar custos na sua indústria automobilística, produzir os modelos ‘Ford T’ apenas na cor preta. Ford então, acerca desta decisão, teria dito ironicamente: "Agora você pode escolher o automóvel na cor que desejar, contanto que seja o preto”. Verídica ou não, o fato é que a frase virou folclore. E este folclore teria inspirado um outro: um técnico de som do Pink Floyd, ao ser perguntado sobre qual guitarra a ser usada num evento, teria respondido: “Qualquer cor que você quiser, são todas azuis”. Talvez a tirada irônica do técnico fosse uma referência ao blues – e na origem do nome deste gênero musical afro-americano baseado nas chamadas ‘blue notes’ (notas azuis), que sugerem um estado de espírito melancólico, ou, depressivo...

Os integrantes do Pink Floyd, acertadamente, raramente opinam ou dão atalhos a respeito das suas canções. Deixam isto para o público e para a crítica. Pois é isto que dá graça a qualquer manifestação artística. Mas numa das raras ‘deixas’ a respeito das canções do grupo, Roger Waters chegou a fazer um comentário a respeito do título ‘Any Color You Like’. E teria dito que há uma tendência de a maioria das pessoas, quando postas num leque de cores a serem escolhidas, optarem pelo azul. Neste raciocínio, o título toma uma forma irônica: na verdade, não há escolha – já que a pessoa está predestinada a seguir com o azul, ou seja, a melancolia, a depressão... A loucura, enfim. Desta forma, fica fácil compreendermos o porquê de ‘Any Color You Like’ ser sucedida por ‘Brain Damage’.

Veja que, ao longo do que já foi analisado nas canções, não é a primeira vez que esta falsa liberdade de escolha aparece. Em Breathe, vimos que, na primeira estrofe, a idéia libertária expressa em ‘Look around and choose your own ground’ (“Olhe em sua volta e escolha seu próprio chão”) se contrapõe ao servilismo presente na segunda estrofe: ‘Don't sit down it's time to dig another one’ (“Não descanse é hora de cavar outra”). Da mesma forma, em ‘Us and Them’, vimos que foi inevitável que o jovem, ante a batalha de palavras entre o pacifista e o homem com arma na mão, acabasse sendo atraído por este último. Em suma, fica patente ao longo do álbum que, a despeito da aparente liberdade que o mundo nos lega, o que acaba prevalecendo é o destino pré-determinado pela ditadura imposta pelo establishment.

No mais, a compreensão do título pode ser buscada na própria capa do álbum. Antes, porém, é conveniente fazer uma breve explicação sobre a imagem publicitária. Quem trabalha com propaganda, sabe que toda e qualquer imagem deve trazer uma “mensagem” ascendente da esquerda para a direita. É neste sentido que os ocidentais lêem; e é neste que os cinegrafistas devem procurar “passear” sua câmera. Mais: tal idéia é buscada também nos gráficos que demonstram, no sentido mais amplo, a evolução de uma empresa: linhas que tendem a “subir” da esquerda para a direita. Assim, as logomarcas ou quaisquer outras figuras que façam referência a determinado produto, tendem a trazer a idéia desta “curva ascendente” – e nunca descendente, o que sugeriria decadência.

Uma vez compreendida tal informação, se você analisar a composição plástica da imagem da capa do álbum, perceberá que ela vai na contramão dessa idéia... Assim, o prisma serve não apenas como um “divisor” entre o feixe monocromático e o espectro de cores, mas também como um divisor de estado de espírito: o primeiro (monocromático) segue na forma ascendente ao passo que o segundo (colorido) sofre uma involução num processo descendente. Ou seja: qualquer que seja a cor que você escolher, de qualquer jeito a trajetória será ‘down’.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Us and Them

US AND THEM
(Composição: Waters, Wright)

Us, and them
And after all we're only ordinary men
Me, and you
God only knows it's not what we would choose to do
Forward he cried from the rear
And the front rank died
And the Generals sat, and the lines on the map
Moved from side to side
Black and blue
And who knows which is which and who is who
Up and Down
And in the end it's only round and round and round
Haven't you heard it's a battle of words
The poster bearer cried
Listen son, said the man with the gun
There's room for you inside


[I mean, they’re not gonna kill ya, so if you give ’em a quick short, sharp, shock, they won’t do it again. Dig it? I mean he got off lightly, ’cos I would’ve given him a thrashing, I only hit him once. It was only a difference of opinion, but really...I mean good manners don’t cost nothing do they, eh?]

Down and Out
It can't be helped but there's a lot of it about
With, without
And who'll deny it's what the fighting's all about
Out of the way, it's a busy day
And I've got things on my mind
For want of the price of tea and a slice
The old man died


Tradução

NÓS E ELES

Nós, e eles
E apesar de tudo nós somos pessoas comuns
Eu, e você
Só deus sabe que nós não tínhamos outra escolha
Lá de trás ele gritou para avançar
E o pelotão de frente foi dizimado
E o General sentou, e as linhas do mapa
Se embaralharam
Preto e azul
E quem sabe qual é qual e quem é quem
Altos e baixos
E no fim das contas isto vira um ciclo sem fim
Você não ouviu isto é uma batalha de palavras
O homem do cartaz berrou
Escuta filho, disse o homem com a arma
Há um quarto pra você lá dentro


[Acho que eles não vão te matar, então se você der neles uma estocada rápida, curta, limpa, eles não vão fazer isso de novo. Sacou? Quer dizer, ele caiu fora porque eu poderia ter lhe dado uma porrada, mas eu só dei uma de leve nele. Era apenas uma diferença de opinião, mas realmente... Acho que boas maneiras não custam nada, né?]

Morto e destruído
Não há como evitar mas há muito a respeito disso
Com, sem
E quem vai negar que é esta a razão de toda a luta
Sai do meu caminho, estou num dia cheio
E estou de cabeça cheia
Por não querer saber do preço do chá e da torrada
O homem velho morreu


Análise
A morte do soldado Eric Flecher Waters na Segunda Guerra Mundial, em fevereiro de 1944, ocorreu cinco meses depois do nascimento do seu filho Roger. Não se sabe se foi este o fator determinante para que a fama de um dos maiores ídolos do pop rock mundial se estendesse também para o seu refinado senso crítico em relação aos descaminhos do mundo – principalmente a guerra. Não é à toa, pois, que ‘Us and Them’ pode ser considerada, sem favor nenhum aos grandes poetas clássicos, uma das mais belas – e realistas – construções poéticas sobre a guerra. Nesta canção, temos mais claramente o toque autobiográfico de Roger Waters – toque este que ressurgiria anos depois em dois outros álbuns: ‘The Wall’ (1979) e ‘The Final Cut’ (1983).

Antes de integrar o álbum ‘The Dark Side of Moon’, ‘Us and Then’ foi batizada preliminarmente de ‘The Violent Sequence’ (“A Seqüência Violenta”) para servir como parte da trilha sonora do filme Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni. A mudança do título foi muito feliz, uma vez que permitiu interpenetrar-se à letra um teor lírico. E principalmente isto: com a mudança, o título transcendeu ao caráter estritamente bélico para nos falar das ‘diferenças’ no seu sentido mais amplo: sócio-econômicas, étnicas, raciais... Iniciemos, pois, a análise...

Como um gancho ao título, o início da letra parece nos remeter a uma “reflexão” de um soldado numa batalha em que o front de um dos lados foi dizimado. E o interessante é que a letra não nos explicita de que lado estava o soldado, ou seja, se do lado perdedor ou vencedor da batalha. Afinal, a idéia é exatamente esta: expressar que, a despeito dos lados que brigam, toda a batalha é protagonizada por inúmeros soldados (pessoas comuns); a ralé que forma a base de uma complexa pirâmide hierárquica em cujo topo está o escol, seja este civil ou militar. E na batalha, não há outra escolha senão obedecer às ordens “vindas lá de trás”: “Forward he cried from the rear”. Aqui, fica clara a distinção entre os comandados da linha de frente e o comandante que, na segura retaguarda, mandou os solados avançarem (para a morte). E na posição ainda mais alta da pirâmide, está sentado o general – que, incólume em seu gabinete ante o mapa, manipula seus comandados em traçados estratégicos que, no fim, transformam-se em linhas embaralhadas que só ele entende. Assim, aos olhos dos comandantes, o real horror da guerra (com mortos e feridos) transforma-se em simples cores (preto e azul) no estratagema esboçado num pedaço de papel. A guerra; as vitórias e derrotas; os impérios, no fim das contas, vira um ciclo sem fim, ou seja, as guerras nunca se extinguirão até por conta de algo só explicável pelo fato de o homem, como diz Saramago, ser o único animal capaz de matar não pela sobrevivência – mas pela pura crueldade fomentada pela ganância. Estamos, enfim, na interminável luta entre opressores e oprimidos.

A letra logo em seguida traz um verso que serve de contraponto: “E no fim das contas isto vira um ciclo sem fim”. Veja que este verso divide dois cenários que sugerem o “ciclo sem fim”: o primeiro, que foi visto acima – ou seja, o resultado trágico de uma batalha em que um front foi dizimado (FIM). E o segundo: uma cena urbana que sugere a gestação de uma guerra (INÌCIO). Para entender tal cena urbana, é necessário explicar algo incomum no Brasil e muito comum nos EUA ou Reino Unido. No Brasil (porque o serviço militar é obrigatório), o exército não precisa fazer a “propaganda de campo”, coisa muito corriqueira no Reino Unido e Estados Unidos (onde o serviço militar, há tempos, é voluntário). A “propaganda de campo” é para convencer um jovem entrar no exército e consiste no seguinte: o exército manda para as ruas belos módulos móveis (normalmente trailers) com pessoas muito bem vestidas em pomposas fardas para fazer uma abordagem aos jovens (normalmente pobres e/ ou imigrantes), tentando convencê-los das grandes vantagens de servir ao exército.

Para a compreensão da letra, torna-se conveniente construir a cena urbana imaginada por Waters usando-se três personagens: o primeiro, é um manifestante pacifista portando um cartaz (sugestivamente escrito “paz”); o segundo é um desses aliciadores enviados pelo exército – na letra simbolicamente representado pelo homem portando uma arma; e o terceiro é um jovem rapaz, muito provavelmente pobre. Mais notadamente a partir da Guerra do Vietnã e o advento Woodstock, era muito comum os manifestantes saírem com a palavra “paz” escrita em cartazes e bradando palavras de ordem contra a guerra. E a letra parece mostrar um jovem que, desavisado, passa por uma manifestação dessas e logo em seguida é abordado pelo aliciador para entrar para o exército. Nasce daí a batalha de palavras: “guerra x paz”. Pois o manifestante alerta o jovem para não cair nessa enquanto o aliciador tenta convencê-lo de forma fraternal: “escuta, filho, há um quarto para você lá dentro”, ou seja, com uma mão o aliciador aponta para o trailer dizendo que ali há um quarto, ou, abrigo para o jovem (o que sugere aconchego) – mas com outra mão segura uma arma (o que sugere violência). Logo após este verso, segue-se a “voz de fundo” que assim começa o seu relato: “Acho que eles não vão te matar (...)”. Não é por acaso que Roger Waters (e os produtores) optaram por mixar tal “voz de fundo”. Conforme já foi explicado anteriormente, tais vozes é que dão o tom do “Lado Escuro da Lua” do álbum. Neste caso específico, o "texto" é de Roger the Hat – uma espécie de supervisor operacional do Pink Floyd. Pois ele, que era tido como um bonachão, foi sorteado com a seguinte pergunta: “qual foi a última vez que você cometeu uma violência”. Evidentemente que o referido trecho, descontextualizado do relato completo, fica sem sentido algum. Também a título de curiosidade, o trecho extraído de Roger the Hat foi exatamente a parte final da sua fala, que relata o seguinte caso: ele teria emprestado sua caminhonete para um sujeito que deu carona para algumas pessoas; depois o sujeito, já bêbado, começou a dirigir alucinadamente, quase causando uma tragédia. Após uma discussão com o incauto, Roger the Hat deu-lhe uma “porrada de leve”. Enfim, esta revelação, ou seja, a confissão (do lado violento) é posta justamente quando o aliciador acaba por convencer o rapaz a entrar para o exército.

O refrão seguinte começa curto e grosso; e aparentemente nos mostra qual foi a opção do rapaz (que se deixou seduzir pelo aliciador) – e qual o destino que estaria traçado para ele: “down and out”. Esta expressão, que já fora usada por George Orwell (‘Down and Out in Paris and London’) para se referir a alguém “na pior, ou, no fundo do poço”, também é muito usada no boxe para um lutador nocauteado. Mas no contexto bélico de Waters, seria algo como “morto e destruído”. E a letra emenda: “não há como evitar, mas há muito a respeito disso”. Esta frase (em que ‘guerra’ e ‘morte’ entram como termos elípticos) começa com um conformismo heideggeriano e acaba com uma ressalva platônica. Ou seja: embora a atração exercida pela guerra (e conseqüentemente a morte) seja algo inevitável para o jovem, não é por falta de aviso e conscientização que eles tomam tal decisão.

Eis que, finalmente, chegamos nas duas poderosas palavras-chave que resumem tudo – e que, inclusive, explicam o porquê de ‘Us and Them’ estar bem situado, no contexto do álbum, logo após a canção ‘Money’: ‘With and without’ (“Com e sem”).
O próprio letrista nos ajuda para explicar a frase: “E quem vai negar que essa é a razão de toda a luta?”. Sim, claro: se pararmos para pensar um pouco, chegaremos à conclusão de que todos os conflitos (bélicos, políticos, religiosos, ideológicos, étnicos, sociais etc.) são motivados essencialmente pela ganância do bicho-homem e sua eterna obsessão pelo “ter” – em detrimento do outro (“não ter”). Não vem ao caso, aqui, entrar em teses sócio-econômicas acerca do fato de a guerra ser algo essencial para o funcionamento da gigantesca “máquina capitalista” – já que às custas do bilionário orçamento bélico das grandes potências locupletam-se todos os setores econômicos, principalmente o setor secundário. Neste raciocínio, a ‘instituição guerra’ nos tempos modernos não é, como muitos imaginam, fomentada apenas pelo fator da conquista, mas sim como algo essencial para fazer girar a fortuna dos que sobrevivem às custas das tragédias humanas. Assim, por exemplo, para que o Congresso norte-americano libere bilhões de dólares para o orçamento militar daquele país, é necessário criar um clima instável entre as nações que justifique o investimento cada vez mais alto em tecnologia. E principalmente isto: é necessário que as bombas explodam.

Nos quatro últimos versos, voltamos ao cenário urbano – e ao desfecho que nos revela a opção tomada pelo jovem. Seduzido pelo aliciador, o jovem, agora, parece impacientar-se com os apelos do “homem que portava o cartaz”. A impaciência do jovem (em relação ao pacifista) parece refletir a reação de muitas pessoas quando cruzam na rua mesmo com um pedinte: “sai da minha frente que estou com pressa e sem saco”.

Enfim, os versos que encerram com chave de ouro a bela composição: ‘For want of the price of tea and a slice / The old man died’. A tradução poderia ser “Por não querer saber do preço do chá e da torrada / O homem velho morreu".Para um brasileiro, ou melhor, para um não britânico, estas duas frases, aparentemente, não têm muito sentido. Mas saiba que são belíssimas sacadas de Waters. Para tentar compreender a idéia, iniciemos por evocar o sentido de um conhecido dito: “O seguro morreu de velho”. Em seguida, se substituíssemos o tea (chá) e o slice (fatia de torrada) por “café com pão” a coisa melhoraria, pois são duas “instituições” brasileiras que representam uma refeição mínima para sobrevivência. Na Inglaterra, tal instituição é o chá com torrada.
Mas o que isto tem a ver com o sentido da letra? Bom, as duas frases fecham metaforicamente o sentido dos versos anteriores e diz respeito ao egoísmo daqueles que, por só olharem o seu próprio umbigo, pouco se interessam no engajamento contra as mazelas do mundo. Por isto, vivem bem e sem estresse. Quer dizer: se uma pessoa não é capaz de questionar; revoltar-se; meter a cara num problema que diz respeito a ela própria (no caso, o aumento do preço da sua alimentação básica que, aliás, privaria os pobres de comer), então há grande chance de se ter uma vida longa, ou seja, morrer de velhice.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Money

MONEY
Composição: Waters

Money, get away
Get a good job with more pay and you're o.k.
Money it's a gas
Grab that cash with both hands and make a stash
New car, caviar, four star daydream
Think I'll buy me a football team

Money get back
I'm all right jack keep your hands off of my stack
Money it's a hit
But don't give me that do goody good bullshit
I'm in the hi-fidelity first class travelling set
And I think I need a Lear jet

Money it's a crime
Share it fairly but don't take a slice of my pie
Money so they say
Is the root of all evil today
But if you ask for a rise it's no surprise that they're
giving none away

Tradução


Dinheiro

Dinheiro, liberte-se
Arranje um bom emprego que pague mais e você fica legal
Dinheiro, é combustível
Agarre a grana com as duas mãos e esconda-a
Carro zero, caviar, luxos de sonhar acordado
Acho que vou comprar um time de futebol


Dinheiro, afaste-se
Estou limpo, peão, mantenha suas mãos longe da minha grana
Dinheiro, é sucesso
Mas não me venha com essa babaquice de dinheirinho suado
Eu me tornei um contumaz viajante de primeira classe
E acho que preciso logo de um jatinho

Dinheiro, é um crime
Reparta-o com justiça, mas não se meta com a minha fatia
Dinheiro, como dizem por aí
É a raiz de todos os males hoje
Mas se você pede um aumento é claro que eles não vão dar


Análise

Com a canção ‘Money’, entramos na fase colorida do álbum. E o título não poderia ser mais emblemático para a canção que abre o “lado B” não só do álbum, mas do “lado B” desconhecido dentro de cada um de nós: preconceituoso, violento, louco... Todos somos um pouquinho disso tudo? Todos possuímos um “lado escuro” dentro de nós mesmos? Bom, tratemos primeiramente de ‘Money’...

Como não poderia deixar de ser, esta também é uma letra muito bem ‘sacada’ e estruturada. Para perceber isto, é conveniente, antes, uma breve explicação sobre a estrutura poética.

A letra está dividida em três estrofes. E cada estrofe é iniciada com uma frase de efeito muito comum quando as pessoas querem maldizer o dinheiro, ou seja, quando alguém quer recomendar o afastamento daquela entidade “demonizada”: “Dinheiro, liberte-se”; “Dinheiro, afaste-se”; “Dinheiro, é crime”. Mas quando você passa para o verso seguinte àquele que abre cada estrofe, percebe que a idéia é totalmente contrária. Ou seja: cada frase de efeito é usada, na verdade, para demonstrar o apego ao dinheiro. E é assim que Waters, com ironia e competência, retrata aquela contradição (para não dizer hipocrisia) das muitas pessoas que, da boca pra fora, dizem “odiar” o dinheiro, quando, no fundo, veneram. Explicando melhor...

A letra começa assim: “dinheiro, liberte-se”. Quem lê isto, imagina logo de cara que a letra está sugerindo que devemos nos libertar, ou, fugir do dinheiro. Mas eis que vem o segundo verso emendando: “arranje um bom emprego com o maior salário que você fica legal”. Ou seja: a idéia do “liberte-se” transforma-se em “o dinheiro é que nos liberta”. O verso seguinte releva o dinheiro como alavanca universal: “Dinheiro, é combustível”... Assim sendo, como o mundo é fomentado pelo dinheiro, devemos agarrá-lo “com ambas as mãos” – pouco importando como... A chave para entendermos a dimensão da ganância e egoísmo – e as possíveis ilicitudes dos ganhos – está na recomendação seguinte: “esconda o dinheiro”. Assim, será possível todos os ícones da luxúria: carro novo, caviar, casas cinematográficas, cruzeiros dos sonhos etc. Por fim, vem a idéia da compra de um time de futebol. Neste desfecho da estrofe entramos numa lacuna interpretativa. Não se sabe ao certo qual o propósito de Waters ao fazer a referência ao futebol, mas poderíamos especular algumas idéias que, por fim, convergem para a própria luxúria. Em primeiro lugar, já naquela época (início dos anos setenta) o esporte inventado pelos ingleses já se configurava como uma paixão mundial ao mesmo tempo dispendiosa e (aparentemente) supérflua – já que o futebol, direta ou indiretamente, sempre movimentou fortunas. Não bastasse isso, o futebol é reconhecidamente uma das maiores fontes de lavagem de dinheiro. Se é verdade que tal realidade é algo bem antigo para o direito tributário, também é verdade que a lavagem de dinheiro no futebol é algo relativamente novo para a mídia. Seria, pois, forçar demais a barra dizer que Waters tivesse fazendo uma referência também à lavagem de dinheiro... Mas nunca é demais lembrar: estamos tratando de Pink Floyd...

Na segunda estrofe, vem outro recado: “Dinheiro, afaste-se”. Tal qual na primeira estrofe, quando começamos a imaginar que a letra sugere que “devemos nos afastar do dinheiro”, o verso seguinte nos dá uma idéia totalmente diferente: “afaste-se da ‘minha’ grana, seu peão”. Neste caso, a idéia lembra-nos a teoria marxista da mais-valia; da exploração da força de trabalho que suscita a lógica que, para a existência de um milionário, é necessária a existência do miserável. Assim, para a possibilidade do carro zero, caviar e os luxos citados na primeira estrofe é necessário que se tenha por perto um ‘jack’ (trabalhador de baixa renda; um ‘peão’ no nosso linguajar) com seu “trabalho honesto, sofrido e mal remunerado” – e desde que este ‘jack’ se mantenha longe da grana.
Os quatro últimos versos da estrofe mostram que o dinheiro, enfim, é sinônimo de sucesso exatamente porque é segregante. Assim, o sucesso, certamente, nunca chegará a quem “rala” para ganhar uns poucos trocados. O sucesso, isto sim, só chega para aqueles que experimentam o conforto das áreas VIP; que viajam de primeira classe. Uma vez que é imprescindível aos gananciosos marcar cada vez mais sua posição social, ou, sua superioridade (financeira), por que então não comprar logo um avião particular?

Na terceira estrofe, temos: “Dinheiro, é um crime”. E repete-se a lógica contraditória das outras duas estrofes, só que desta vez imbuído por um cinismo: quando passamos para o verso seguinte, constatamos que o crime, na verdade, é não repartir o dinheiro com justiça; e uma vez repartido, crime também é meter a mão na grana alheia. Este desfecho reproduz claramente o cinismo do patronato: “é preciso repartir o bolo (justiça social), mas desde que não metam a mão no meu naco (fortuna)”. Ou seja: nesta lógica, nunca haverá justiça social. E os dois últimos versos dizem exatamente isto: “eles” (o patronato) dizem que o dinheiro é a fonte de toda a desgraça do mundo; mas se você for pedir para “eles” um aumento, é claro que eles não vão te dar. Tal lógica é bem sintetizada num utópico dito popular: “se dinheiro não traz felicidade, dê-me o seu e seja feliz”.