segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O poder da indústria de boatos

 A onda de boatos numa eleição não pode ser analisada como um fator circunstancial, ou seja, algo que se espalha por aí como que por “geração espontânea” que, em progressão geométrica, pode atingir níveis devastadores para um candidato. Digo isto porque, dois anos atrás, conheci de perto todo um processo de mentira e difamação conscientemente arquitetada que acabou decidindo as eleições para prefeito num município de porte médio. Até por não dispor de elementos comprobatórios (entenda-se então esta trama como “hipotética”), vou preservar o nome da cidade e dos protagonistas. Digamos que o nome da cidade é Sucupira. Qualquer semelhança com fatos reais em outras eleições terá sido mera coincidência (?).


A gestação dos boatos

No município de Sucupira tínhamos, entre vários candidatos a prefeito com carreira política conhecida, a candidata Fulana, que tinha sido reitora por dois mandatos consecutivos (total de oito anos) da universidade local. O perfil político e pessoal da candidata destoava, pois, dos concorrentes tradicionais: embora não fosse uma novata na política, Fulana nunca tinha disputado um cargo eletivo que não fosse a disputa para a reitoria da universidade. No âmbito pessoal, Fulana tinha meia-idade e era solteira. Bom, com o início da campanha eleitoral, a candidata Fulana disparou nas pesquisas eleitorais até liderar como folga a disputa. Cogitava-se, inclusive, que a decisão da eleição poderia ficar no primeiro turno.

Concomitante à vertiginosa ascensão de Fulana, comecei a receber vários e-mails (spams) que destruíam a reputação dela. Para se ter uma noção do nível das mensagens, um dos e-mails fazia menção à orientação sexual de Fulana. E muitos e-mails eram repassados por próprios conhecidos meus que passei a chamar de “aloprados da internet”, ou seja, aqueles que indiscriminadamente repassam spams (que nunca trazem uma fonte crível da informação) na base do “apenas repassando”. Como se tal providência – “estou fazendo a minha parte em repassar a denúncia” – fosse pré-requisito para a construção da cidadania.

Outro e-mail que recebi denunciava uma “bomba” que iria destruir a candidata Fulana, que teria cometido várias falcatruas na universidade quando era reitora. As “provas dos crimes” eram os anexos com vários documentos apócrifos com supostos inquéritos sobre “corrupção”. Como sempre, não havia um único dado concreto; um único link para que o leitor tivesse a mínima chance de verificar se aquilo tudo era verdadeiro.


O espalhafato

De início, não relevei os e-mails que tinham o claro objetivo de denegrir Fulana. Mas a chamada “luz amarela” acendeu quando ouvi um relato de uma amiga que tinha ido a uma festa beneficente. Lá pelas tantas, as convidadas resolveram falar da sucessão municipal. Eis que a anfitriã da festa desandou a falar da candidata Fulana que, na opinião dela, era uma “bandida” que tinha dado “altos tombos” na universidade quando era reitora. Minha amiga, eleitora de Fulana, contestou. Mas a anfitriã insistiu dizendo que o filho dela tinha visto na internet e que “estava tudo documentado”.  

Depois, fiquei sabendo por intermédio de um político local que o adversário de Fulana tinha contratado dezenas de artistas profissionais especialmente para espalhar boataria na cidade. O comando de campanha já tinha inclusive mapeado, em cada bairro, todos os pontos estratégicos (bares, padarias, mercados, igrejas, praças, filas, pontos de ônibus lotados etc.) e também os líderes e “fofoqueiros” conhecidos de cada região para que os boatos fossem dissipados com maior eficiência. No princípio, achei ridícula tal acusação com cara de teoria conspiratória. Mas, com o passar dos dias, aconteceu uma inexplicável queda de Fulana nas pesquisas. E resolvi rever o meu conceito sobre a tal “teoria conspiratória” quando enxerguei que a minha própria ignorância em determinados assuntos me tornava suscetível a sofrer a influência de pessoas desconhecidas.  


A arte da aliciação

A “técnica” (por assim dizer) da aliciação usada naquelas eleições faz sentido para quem entende que, em qualquer campanha (seja ela política ou comercial), a difamação proferida por uma pessoa comum é muito mais poderosa do que a propaganda oficial do produto. Ou seja: por melhor que seja a propaganda do biscoito da marca “X”, ela será muito menos eficiente do que a anti-propaganda de um cidadão desconhecido que porventura comentar perto de você: “achei um pedaço de barata dentro do biscoito “X”. Isto lembra a lenda da cobra que teria matado uma criança numa piscina de bolinhas numa famosa rede de lanchonetes. Embora fosse pura lenda, o fato é que as mamães tomaram pânico pelas piscinas de bolinhas.

Pessoalmente, já perdi as contas de quantas vezes me deixei levar pela propaganda positiva de desconhecidos sobre determinada marca de produto exposto num supermercado, por exemplo. Por outro lado, já deixei de comprar um produto alimentício de marca desconhecida simplesmente porque tinha ouvido duas senhoras conversando, sendo que uma delas disse convicta que o produto daquela marca era “uma porcaria”. Assim, se você é leigo no assunto, tende a acatar aquilo como verdade.

Quando lembro daquelas duas distintas senhoras conversando sobre uma marca de alimento que “não prestava”, constato a tamanha eficiência dos diálogos populares que “grampeamos” involuntariamente no nosso dia-a-dia. Outro dia mesmo, numa fila de banco, prestei muita atenção no diálogo de dois homens logo atrás de mim. Falavam da sucessão presidencial e não se conheciam. Não “metiam o pau” em candidato algum; apenas comentavam que uma das candidaturas iria surpreender. E ali, ouvindo aquele diálogo despretencioso, eu aceitava aquilo como verdade. Aquilo sim é a genuína “opinião pública. E lembrei da suposta contratação de atores para plantar fofocas. Perguntei-me: e se aqueles dois sujeitos fossem atores? E se aqueles dois desconhecidos, ali na fila, convergissem para o fato de que o político Fulano é corrupto?  Quantos ali iriam acatar o diálogo como verdade? E quantos iriam repassar isto aos familiares e amigos?


O uso dos religiosos

Naquela malfadada eleição em Sucupira, outro fato mereceu destaque – mas desta vez feito às claras pelo candidato adversário de Fulana: o pedido de apoio a praticamente todas as igrejas evangélicas da cidade. Havia até a promessa de que eles teriam participação ativa num eventual governo. Porém, já circulava a notícia que, no underground daquele pedido de apoio aos líderes religiosos, estava a baixeza de espírito que “denunciava” a orientação sexual de Fulana, que não tinha marido, não tinha filhos e que assim, por desconhecer o valor da tradição, da religião e da família, não tinha capacidade moral para administrar uma cidade.

O que mais reforçava a tese de que a “teoria conspiratória” poderia não ser tão delirante assim era a própria campanha oficial na TV do candidato. Nas inserções de 30 segundos na TV, declarações de atores e populares levantavam dúvidas sobre Fulana. Um ator com feição grave fechava um discurso desta forma: “E aí!? Você tem certeza que conhece a Fulana?”; noutras inserções, populares supostamente escolhidos aleatoriamente nas ruas também falavam de Fulana. Um deles, por exemplo, dizia ao “repórter”: “Fulana? Ela é estranha, né?”.

E no horário eleitoral da TV do candidato, este começou a mostrar toda sua família reunida na sala da casa: filhos, netos e até uma empregada que era considerada “parte integrante da família”. Depois, na cozinha, o candidato foi preparar junto com os netinhos um prato italiano, quase que numa comédia pastelão que visava mostrar que aquilo sim era a verdadeira felicidade e união de uma família que seria levada para toda a cidade. E a Fulana? Ora, "Fulana é estranha, né?"

Resultado: no segundo turno da eleição, a candidata Fulana foi ultrapassada pelo adversário, que acabou ganhando por pouquíssimos votos.

Aquela eleição não foi uma vitória do adversário de Fulana. Foi, isto sim, uma vitória da baixaria e do preconceito contra a mulher.

(Publicado no Portal Nassif dia 04 de outubro de 2010).


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